Fernando Magalhães, in Observador
É na sua matriz humanista cristã, no seu ideário, que assenta justamente o sentido da existência da escola católica.
Olhar a fundação é, regra geral, prenúncio de bom caminho. Leva-nos ao encontro da origem fundante, isto é, daquilo que deu fundamento e que, por isso, se revela tantas vezes lugar mais fundo, onde se encontra o fundamental. Ainda que esse não seja lugar de morada permanente, mas referência e partida, como, também aqui, importa.
É o caso do tema que hoje nos ocupa, a educação católica, que, na fundação da nacionalidade, se confunde com o próprio ensino no país.
A Igreja Católica cuidava do ensino
No exercício que aqui levo a cabo, tomo apoio em mãos competentes. Num primeiro olhar, mais histórico, nas de Jorge Cotovio, um conhecedor maior da história do ensino católico e privado em Portugal (O ensino privado nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX: o contributo das escolas católicas, Lisboa, 2012; O ensino privado, Lisboa, 2004), cujo saber aqui decalco. Num segundo e consequente olhar, revisito convicções pessoais e outras interpelações que, por pessoas e vias diversas, foram também deixadas a ressoar no recente II Congresso Nacional da Escola Católica (Fátima, 10 e 11 de Outubro de 2024).
No princípio da nação, a educação era, de facto, assim. Os mosteiros do Reino são o lugar do ensino. Santa Cruz, em Coimbra, com os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, ou Alcobaça, com os monges de Cister, são polos extraordinários de irradiação de cultura que marcam estes primeiros séculos de independência. Além do mais, a falta de cultura entre o povo, faz com que os monges se entreguem também a outras áreas do saber, tal como o Direito, a Medicina e a Agricultura, para além da Teologia, e de outras áreas das Letras e das Ciências a que se dedicavam.
Se, numa primeira fase, o ensino apenas se destinava aos que tinham horizonte de uma vida eclesiástica, depois passaram também dele a beneficiar outros que não os clérigos, designadamente nas escolas episcopais. Note-se que, não existindo ensino público nos primórdios da nação, os mosteiros, para além de assegurarem a formação dos seus próprios monges, também garantiam a instrução das crianças que desempenhavam funções na liturgia.
Jesuítas, da liderança à expulsão
Todo este processo será altamente influenciado no século XVI pelos conflitos internos no seio da Igreja, decorrentes da Reforma. Mas é também no mesmo século que Inácio de Loiola funda a Companhia de Jesus, com especial acção na educação e ensino, e é nesse século que, em Portugal, D. João III irá confiar aos jesuítas o domínio da educação, contando com eles, assim, para a grande renovação cultural que se encontra a realizar no Reino.
A educação é dominada, em Portugal, pela Companhia de Jesus, sendo disso clara expressão as escolas públicas que funda, escolas abertas a estudantes não jesuítas, primeiro em Lisboa, depois em Évora. Esta expansão é traduzida não apenas pelo número de estabelecimentos, pela extensão geográfica, pelo tipo de estabelecimento, mas também pelos seus destinatários, a ponto de dispor deles também exclusivamente para estudantes pobres. Actividade de semelhante índole era levada a cabo no âmbito da vida de outras ordens religiosas. Seria tentador, aqui, dizermos que “o resto da história é conhecido”. O protagonismo alcançado pelos discípulos de Loiola concorreu para um forte questionamento do estatuto da Companhia de Jesus por parte de pessoas influentes, que conduziram, com o Marquês de Pombal, ao seu afastamento do tecido educativo e à sua expulsão do país.
O Estado no controlo do ensino
Com esta intervenção estatal na administração escolar, o controlo do ensino está, pela primeira vez na história de Portugal, exclusivamente nas mãos do Estado. Entre encerramentos e expulsões, reaberturas e reentradas, em ciclos de repetição, as escolas da Igreja, exclusivamente confiadas a congregações, ainda que colocadas à margem do sistema, sobrevivem e afirmam-se, quer pela qualidade do seu ensino, quer pela sua atitude de serviço a favor dos mais esquecidos na sociedade e do que eram as franjas do sistema educativo (e que hoje denominaríamos como préescolar, alunos com necessidades especiais, ensino artístico, ensino técnico e profissional, classes vulneráveis e excluídas, etc.).
Não é doutro modo, que não em instabilidade, até ao alvor da República. E se, logo nos primórdios do Estado Novo, se formaliza a organização do ensino particular – sem prejuízo do evidente objectivo de o controlar a todos os níveis – só em 1940 se regula o ensino católico, com a Concordata celebrada entre o Estado e a Igreja. Reconhecia-se, assim, o direito de as associações e organizações da Igreja estabelecerem e manterem escolas privadas paralelas às estatais, podendo ser, nos mesmos termos, subsidiadas e oficializadas (apesar de nenhuma ter sido nem subsidiada nem oficializada até aos inícios dos anos 70).
O espaço das escolas católicas
Sem prejuízo desta omnipresença política, administrativa e pedagógica do Estado, as escolas católicas difundem-se por todo o território, em especial pelo interior, onde se encontravam, em larga medida, as populações mais esquecidas e desprotegidas. Importa referir que, na década de 60 do século XX, não só vemos o tecido das escolas católicas em Portugal largamente composto pelas escolas congregacionais, como assistimos à criação de muitas escolas diocesanas, aproveitando a natural presença da Igreja em todo o território nacional e a forte procura do ensino liceal.
Além disso, há uma outra curiosa realidade: o surgimento de escolas que, não sendo formalmente escolas católicas, são fundadas e dirigidas por cristãos de elevada convicção pessoal e vivência da sua fé, que conferem aos seus projectos educativos um ideário humanista cristão. Por esta época, 60% das 400 escolas privadas são de inspiração cristã e é nestas que, a par dos outros níveis de ensino, se educam 60% dos alunos do país que frequentavam o ensino liceal. Quer isto dizer que foi esta maioria de escolas de matriz católica a garantir a escolarização de milhares de jovens neste país, para não falar dos milhares de rapazes que, por via dos seminários – para muitos, autênticas escolas dos “pobres” – saíram de aldeias recônditas e se tornaram cidadãos activos, qualificadamente escolarizados, com acesso a um ensino superior a que, doutro modo, nunca ou dificilmente teriam acedido, com uma inclusão e projecção sociais assinaláveis.
De facto, as escolas católicas e as restantes de matriz cristã foram verdadeiros agentes da democratização do ensino, antes de uma Revolução que se apropriaria da missão e do termo. Convém recordar o que, ainda antes de Abril de 1974, com a “explosão escolar” de Veiga Simão, e após aquela data, com o processo compulsivo de saneamentos e nacionalizações, nunca deixou de ser uma tentação histórica do Estado: centralizar o sistema educativo, asfixiando, com maior ou menor grau, as iniciativas da Igreja e da sociedade civil. Tentação que regressaria mais tarde, ainda que com formas renovadas.
Apesar do público reconhecimento da elevada qualidade das escolas católicas, quer sob o ponto de vista do ensino quer sob o da educação, e da sua afirmação natural junto das famílias, uma vertente ideológica de Estado pretendeu prevalecer sobre a realidade, levando a que, num passado recente e sob o desígnio de “defesa da escola pública”, novos equipamentos escolares se construíssem em territórios onde havia estabelecimentos de ensino privado de qualidade e de provas dadas, com quem o Estado contratualizara durante décadas, e que, assim, se viram obrigados progressivamente a encerrar, com todas as consequências educativas e sociais daí decorrentes.
Hoje, são 122 as escolas católicas, com aproximadamente 70.000 alunos, 5.500 professores e 3.500 educadores não docentes. Em contas redondas, do pré-escolar ao 12.º ano, constituem 4% dos alunos do país (sem falarmos de todas as crianças que frequentam as valências do pré-escolar nas instituições católicas no terceiro sector) e 20% dos alunos do ensino particular e cooperativo. São projectos educativos distintivos no universo educativo português, quer na sua vertente pedagógica, quer na sua missão social, quer na sua manifesta intencionalidade educativa ao nível dos valores com que se ocupa da formação integral daqueles que lhe são confiados pelas famílias que os escolhem.
Função e vocação da escola católica, hoje e amanhã
E se, no princípio da nação, a educação era assim, no hoje e no futuro dela, a Escola Católica continua a ter um lugar absolutamente inestimável e insubstituível.
Desde logo, pela sua identidade, que a faz única! Ela é detentora de uma matriz que, na fidelidade, se tem adequado sempre a mundos em mudança, com o desafio também de o fazer em relação a este, maioritariamente secularizado. É na sua matriz humanista cristã, no seu ideário, que assenta justamente o sentido da sua existência. Ainda que em contexto adverso, é sempre, também agora, anunciadora e possibilitadora de uma educação para a transcendência.
Também pela sua renovação e continuidade, que a faz ímpar no contexto educativo nacional. Também hoje, a Escola Católica tem de ter, há-de ter a criatividade e discernimento para encontrar respostas a questões interpelantes como, por exemplo, a implicação que a diminuição das vocações de consagração tem na continuidade de projetos educativos congregacionais, a escassez de docentes e, por maioria de razão, de educadores docentes e não docentes identificados com a fé cristã e com os carismas dos diversos projectos educativos.
Também na sua luta pela liberdade, de que foi protagonista e agregadora de vontades no passado, e que faz dela líder de processos, convocando as restantes escolas particulares e cooperativas neste desafio. Apesar de um Estado que insiste em deixar as escolas privadas e, por isso, também as escolas católicas (salvo as que se encontram em regime supletivo no sistema educativo) acessíveis apenas àqueles que as possam pagar, as escolas católicas têm de continuar a defender tenazmente as liberdades de aprender e de ensinar como direito constitucionalmente consagrado, que permita a todas as famílias, que o queiram, escolhê-las como as parceiras na educação dos seus filhos. E é essa liberdade que conferirá aos filhos de famílias pobres – sem prejuízo dos muitos que são acolhidos e mantidos nas escolas católicas pelos orçamentos das suas entidades titulares – o acesso universal a estes projectos de ensino.
Também no seu ser de todos, que mais do que pertença é missão. Uma Escola Católica não é apenas para católicos. Uma Escola Católica – como o próprio nome indica – é para todos os que a escolhem, sabendo o que ela é. Migrantes de todas as origens, islâmicos, hindus, ortodoxos, protestantes, sem opção religiosa, etc., etc. como são aqueles muitos que as habitam. Sem proselitismos, mas sem deixar de anunciar a riqueza única que para estas escolas representa a beleza da Criação e a esperança com que olham para a vida e para o mundo, que insistem em transformar, pela palavra e pelo testemunho, em morada e em lugar melhor. Até para a Igreja têm de constituir lugar de especial eleição, quanto mais não sendo na medida em que, para muitas crianças, adolescentes e jovens, as escolas católicas são já o único contacto com a mensagem, a mundividência, a cultura cristã a que de um modo geral terão acesso.
Por fim, sem prejuízo de tantos outros aspectos, em pacto, em Pacto Educativo Global, como nos convida o Papa Francisco. Exactamente desse modo, em lugar de ninguém se sentir detentor de uma qualquer hegemonia ou preponderância. Não! Ao contrário, em articulação harmoniosa de todos os atores educativos porque o desígnio educativo é grande demais para que não precise de todos, mesmo todos
E tudo isto porque para nós, católicos, tudo isto decorre não de uma iniciativa individual, mas antes da escuta atenta e da aceitação livre de uma proposta de amor há muito tempo recebida, seguida de um consequente mandato, “Ide e ensinai”, dito pelo Mestre. Tudo para que todos tenham vida e vida em abundância. E, mais: para que a alegria de todos seja completa. Se, ainda antes do princípio, era assim, é só assim que tem de continuar a ser. Em caminho persistente e em activa esperança; enfim, como peregrinos.
in Observador