Há aproximadamente duas semanas, como Vice-Presidente da Associação Portuguesa das Escolas Católicas (APEC), tive a oportunidade de participar numa sessão de apresentação de um livro que homenageia o Professor António Luciano de Sousa Franco, compilando textos do autor sobre a Liberdade de Educação (cf. https://pontosj.pt/especial/nos-80-anos-de-sousa-franco-falemos-de-liberdade/).
Em pleno meio académico, na Universidade Católica Portuguesa (UCP), na presença da Doutora Matilde Sousa Franco, viúva do homenageado, de D. António Moiteiro, presidente da Comissão da Educação Cristã da Conferência Episcopal Portuguesa, da Professora Capeloa Gil, Reitora da UCP, e do Professor Guilherme Oliveira Martins, diante de uma plateia preenchida por notáveis figuras, como o Presidente do Tribunal de Contas, o Professor Jorge Miranda, e o Professor Marçal Grilo, entre tantos outros, incluindo alunos e pais de escolas católicas, retive uma inquietação: não existe democracia, no que ela significa de avanço plural e de respeito pelo outro, sem liberdade efetiva de educação.
Não é minha intenção recuar aos tempos pombalinos, em pleno século XVII, em que por diversas razões, incluindo políticas e ideológicas, com a expulsão dos jesuítas, se pôs fim a uma rede nacional de mais de 30 escolas de acesso gratuito, mergulhando, segundo alguns especialistas, o país em largos anos de uma elevada taxa de analfabetismo. Também não é minha intenção recuar aos tempos do velho regime, quando a ditadura se manifestava muito reticente em relação ao ensino particular e cooperativo, não permitindo o livre exercício da liberdade de aprender e de ensinar. E, ainda que fosse justo, também não é minha intenção recuar a um passado mais recente, em que por pura ideologia, o Estado, rompeu, sem pré-aviso, de forma unilateral e abrupta, um conjunto de contratos de associação, que manteve durante longos anos, levando ao fecho de escolas, despedimentos em massa e, mais grave ainda, obrigando alunos a abandonar escolas de qualidade, contra a sua vontade.
Todavia, depois de três longos anos de pandemia, em que muito se discutiu a segurança nas escolas, os planos de contingência, os planos de recuperação das aprendizagens, as aulas online, a digitalização do ensino, a vacinação e a testagem, o pensamento do Professor Sousa Franco deixa-me uma pergunta: as famílias portuguesas são, hoje, mais livres de escolher responsavelmente a educação que querem para os seus filhos, podendo optar por Projetos Educativos diferenciados e inovadores?
Antes das férias, a propaganda do Ministério de Educação, muito preocupada com a comunicação, fez saber que os horários dos professores disponíveis a concurso estavam quase todos preenchidos. Mas o início do novo ano letivo trouxe mau agoiro e, infelizmente, o que vemos é uma situação gravíssima de alunos sem professor, horários por preencher, professores colocados a centenas de quilómetros de casa, falta agravada de professores em determinadas áreas, um concurso nacional de professores que injustamente não dignifica a carreira docente, uma nova legislação sobre as habilitações para a docência que quase nada tem de novo, isto é, remendos sobre remendos, desnorte sobre desnorte, afirmações categóricas sem sentido e que não respeitam as famílias portuguesas e a educação. Com a agravante de os apoios do governo às famílias portuguesas continuarem a ser discriminatórios, diferenciando os alunos do ensino público dos do ensino privado, de forma injusta e inconstitucional. Onde está afinal a livre escolha, quando os pais, no exercício das suas liberdades, conquistadas a muito custo, optando por uma escola privada ficam sem acesso a manuais gratuitos, a apoios económicos para a aquisição de meios digitais e ainda têm de pagar duas vezes pela educação dos seus filhos, uma na conta das finanças e outra nas propinas da escola?
Analisando em detalhe a medida salutar e justa da gratuidade dos manuais, continua a ser juridicamente incompreensível como são excluídos cidadãos portugueses, só porque optaram por uma escola privada. Ou se trata de pura ideologia, o que a ser verdade é grave, por se tratar de descriminação; ou se trata de limitação orçamental, o que a ser verdade, também é grave. Se não é possível economicamente aplicar universalmente a medida, porque não se restabelece a justiça e se aplica consoante os rendimentos e não em função do tipo de escola, sabendo que famílias ricas e pobres existem em ambas as escolas?
Recentemente, na sequência das políticas da transferência de poderes, vimos as autarquias a assumir grande parte da gestão das escolas estatais. Todavia, uma vez mais, o Estado não confia: dá poderes limitados e não dá dinheiro. Aquilo que poderia significar a realização do velho sonho da descentralização, uma vez mais revelou-se um embuste: a tão anunciada transferência de poderes, na prática, não passa de uma transferência de contas e gastos, que deixam de ser imputados ao orçamento de estado e que passam a estrangular os orçamentos municipais, complexificando a gestão das escolas. Seguindo o princípio da subsidiariedade, se queremos uma gestão menos estatal e mais ágil da rede escolar, então não basta transferir contas, é preciso transferir poderes efetivos, dando liberdade às autarquias para formar redes educativas inclusivas, que englobem todo o tipo de escola, não perpetuando um modus operandi próprio do velho regime e do estatista Ministério da Educação. Seguindo o pensamento do Papa Francisco, com outro tipo de políticas, seria possível criar em Portugal um verdadeiro Pacto Educativo, acabando com a preconceituosa oposição entre escola estatal e privada, e dando às famílias mais condições e apoios económicos que lhes permitissem uma escolha real, e não uma escolha induzida, da escola dos seus filhos.
Como referia Sousa Franco, em 1994: “o futuro da liberdade de ensino será o futuro do modelo pluralista e democrático da sociedade. Onde existem sociedades monistas, no passado ou no presente, ela não existe: na sociedade dominada pelo Estado nacional (“cuius regio, eius religio”), na sociedade dominada pelo monismo liberal do Estado laico (sistema napoleónico), na sociedade marxista em que a religião é avaliada como fenómeno alienatório de classe e em que a uniformidade do sistema pela rejeição da propriedade, da iniciativa social e cultural e do pluralismo, é incompatível com qualquer forma de liberdade de ensino – julgada “individualista”, “capitalista” ou “liberal” –, então não haverá verdadeira liberdade de ensino, porque não há liberdade de ação e organizativa educativa. Ao invés, vê-se que o destino da liberdade de ensino é indivisível do futuro da liberdade, da democracia, do pluralismo, do respeito pelos direitos do homem. A prospetiva da liberdade de ensino tem um horizonte necessariamente global: os riscos que ameaçam a sociedade humana e livre são bem os mesmos que ameaçam a liberdade de ensino”. (SOUSA FRANCO, 2022, pp. 174-175)
P. Carlos Carvalho sj In Jesuítas em Portugal O SJ